Obra icônica de Nelson Rodrigues, mostra a história de Zulmira, interpretada por Camila Morgado, que prepara seu próprio enterro.

A Falecida é uma das obras de Nelson Rodrigues (1912 – 1980) classificada como uma tragédia carioca. Ambientada no Rio de Janeiro, conta a história de Zulmira (interpretada por Camila Morgado) que prepara seu próprio enterro com muita pompa, contrastando drasticamente com sua vida simples e regrada.
A peça escrita em 1953 já coloca na rubrica inicial que não se trata de uma montagem realista, e deve ser feita numa cena vazia, com as personagens trazendo seus objetos de cena para indicar os lugares que estão.
Túmulo
O diretor Sergio Módena parte desta propositura e coloca no centro do palco um grande mausoléu, no cenário criado por André Cortez. Deixando explícito o desejo de Zulmira em garantir uma morte bela.h
Então, é a partir do primeiro encontro com um vidente que inicia a jornada dessa mulher que nutre uma implicância pela prima Glorinha. Também converte-se à igreja teofilista e prepara seu próprio enterro.
Diante dessa sequência controversa da mulher que ia sempre à praia, a indicação da sua tormenta acontece no encontro entre seu marido Tuninho (Thelmo Fernandes) e Pimentel (Alcemar Vieira). Alí compreendem-se os fatos e percebem-se os elementos perversos da moralidade, culpa e machismo.
“A Falecida revela sua força e atualidade num país ainda regido pela falsa moralidade e hipocrisia. Nos dias de hoje o fanatismo religioso abordado por Nelson Rodrigues tornou-se ainda mais significativo em nosso país”, explica o diretor. Tornando, assim, o enterro a redenção da mulher pecaminosa.
Plástica
Nesta estética simplificada em torno do jazigo, vale-se dos figurinos de Marcelo Olinto num recorte de época, sem datar os fatos na década dos acontecimentos. Além de colocar nos pés dos homens sapatos clássicos, bem engraxados. Símbolo da masculinidade.
A trilha sonora de Marcelo H vai de canções da cantora Dalva de Oliveira ao samba para revelar os sentimentos mais escusos e culpados de Zulmira. Prevalecendo sempre uma dicotomia entre o divino e o profano. E a luz de Renato Machado marca o túmulo e colabora na construção desse universo taciturno, mesmo no solar Rio de Janeiro.
Módena que segue depois da bem sucedida montagem de Longa Jornada Noite Adentro de Eugene O’Neill (1888 – 1953) segue a estética pedida por Rodrigues. Mas inova num prólogo lírico na abertura, deixando explícito o lugar sagrado do jazigo de A Falecida.
A partir daí, os atores entram no palco sempre de costas, ora reverentes ao sagrado lugar de Zulmira, ora com a molemolência do carioca do morro e do samba.
Intérpretes
Também diante de tantas personagens, Módena também usa de curingas e consegue com isso destacar artistas como Thiago Marinho e Alan Ribeiro.
Gustavo Wabner assume outros personagens, e mostra-se à vontade na persona do vendedor de caixões Timbira. Vieira é um bicheiro esperto, vencedor e cheio de graça. Ganha a cena!
Stela Freitas abre uma das cenas na pele Madame Crisálida e acerta-se no papel da mãe atormentada. Com facilidade à comédia dá um tom leve aos devaneios da filha, mas chega ao drama da filha morta com segurança.
Thelmo Fernandes que tem uma vasta experiência em outras obras do autor, com duas montagens de Beijo No Asfalto, em 2001 e 2015. Este último rendeu, em uma versão musical, rendeu o prêmio de melhor ator coadjuvante pela CESGRANRIO e Fita. Aqui é um desempregado sonhador, apaixonado por futebol, boa gente, mas que revela os elementos e bases do machismo.
Sábato Magaldi (1927 – 2016) disse que A Falecida é uma das personagens que definem com maior clareza o universo feminino de Rodrigues. Então, Morgado assume bem esse lugar. Atriz afeita às mulheres complexas, consegue ser engraçada, perversa e resignada a sua culpa. Vê-la em cena, na televisão e no cinema é sempre valioso, mas no teatro é imperdível.
Um clássico sempre tem muito a dizer mesmo que a sociedade se modernize, criando novas camadas e diálogos, por isso A Falecida nos alarma como certos dispositivos ainda se mantêm na ordem do dia.
Por isso, Nelson Rodrigues ainda é tão relevante 70 anos depois.